Programa Nação, da TVE, sobre Luiz Gama e Luisa Mahin

“Nesta sexta, o Nação vai contar a história de Luiz Gama e Luisa Mahin. O programa mostra a trajetória do advogado e jornalista Luiz Gama, um escritor renomado e um dos maiores abolicionistas do país, mesmo após ter sido vendido como escravo pelo próprio pai. E da sua mãe, a quitandeira africana, que é considerada por muitos uma verdadeira rainha e uma das articuladoras da Revolta dos Malês. Duas figuras importantes para a história do Brasil, que não tiveram suas lutas reconhecidas.”

Luiza Mahin existiu?

“Sou filho natural de negra africana, livre, da nação nagô, de nome Luísa Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa, magra, bonita, a cor de um preto retinto sem lustro, os dentes eram alvíssimos, como a neve. Altiva, generosa, sofrida e vingativa. Era quitandeira e laboriosa.”

LUIZ GAMA

Através da obra de Luiz Gama foi possível tomar conhecimento da existência de uma das mais consideráveis figuras femininas do movimento negro, Luiza Mahin.

Segundo estudos não existem documentos que comprovem a existência de Luiza Mahin, entretanto essa mulher ficou conhecida através dos escritos do filho, Luiz Gama. Sua primeira aparição foi no poema intitulado Minha Mãe, escrito em 1861. Além disso, foi mencionada carta autobiográfica que o militante enviou para o amigo Lucio de Mendonça, descrevendo brevemente a história da mãe.

Luiza Mahin é considerada uma figura de representatividade no movimento negro e é muito exaltada no “movimento feminista negro” por representar a mulher negra mobilizada com as lutas populares.  Isso porque existem indícios de sua participação como articuladora da Revolta dos Malês(1835) e outras, já que como quitandeira poderia distribuir mensagens na comercialização dos quitutes.

Utilizando as descrições de Luiz Gama o movimento negro consegue propagar a importância de Luiza Mahin e sua história para a resistência negra. No entanto ainda existem dúvidas a respeito de sua real existência, visto que um dos indícios mais fortes de sua existência são as obras de Luiz Gama.

Abolicionista que libertou mais de 500 escravos será reconhecido pela OAB

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) dará o título de advogado a Luis Gama, que exerceu as atividades do Direito sem ter formação acadêmica – quem atuava dessa forma era conhecido como “rábula” -, o que não o impediu de libertar mais de 500 escravos durante sua vida. Acompanhe matéria completa que foi publica no dia 30/11/2015 no site de notícias UOL.


Abolicionista que libertou mais de 500 escravos será reconhecido pela OAB

Negro liberto que se tornou libertador de negros, Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) ficou conhecido como um rábula que conseguiu alforriar, pela via judicial, mais de 500 escravos. O rábula exercia a advocacia sem ser advogado.

Luís Gonzaga Pinto da Gama, defensor dos escravos no Brasil

Numa reescrita tardia da história, sua designação vai mudar. Na noite da próxima terça-feira (3), em cerimônia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Luiz Gama deve receber da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 133 anos após a sua morte, o título de advogado. “No atual modelo da advocacia brasileira, é a primeira vez que tal homenagem é conferida”, afirma o presidente nacional da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coelho.

“Já era hora de ele ter esse reconhecimento oficial”, avalia o advogado Silvio Luiz de Almeida, professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama (ILG). “Além de ter sido um homem importante na questão do abolicionismo, foi grande jurista e advogado de teses brilhantes.”

“Embora não fosse advogado, Gama era um grande defensor da abolição e sua atuação como rábula livrou inúmeras pessoas dos grilhões escravistas”, pontua o presidente da OAB.

Na cerimônia, Luiz Gama será representado por um tataraneto, um de seus 20 e tantos descendentes vivos, o engenheiro e empresário Benemar França, 68. “Tomei contato com a biografia desse meu antepassado quando estava no 2º ano ginasial e um professor de história pediu que pesquisássemos, cada um, sobre as nossas famílias, a nossa genealogia”, conta. “O que descobri encheu-me de orgulho.” Além da condecoração póstuma, o evento Luiz Gama: Ideias e Legado do Líder Abolicionista prevê dois dias de palestras e debates no Mackenzie.

Autor da biografia “Luiz Gama: O Advogado dos Escravos”, publicada pela editora Lettera.doc em 2010, o advogado Nelson Câmara acredita que a iniciativa da OAB é correta “embora serôdia”, ou seja, tardia. “Era um sujeito de grande luminosidade”, afirma Câmara.

Autodidata

Nascido em Salvador, filho de um português com uma escrava liberta, foi vendido como escravo pelo próprio pai quando tinha dez anos. Alforriado sete anos mais tarde, estudou direito como autodidata e passou a exercer a função, defendendo escravos. Também foi ativista político, poeta e jornalista.

Ele bem que tentou cursar direito no largo São Francisco. “Mas a aristocracia cafeeira da época não permitiu, porque ele era negro”, atesta Câmara. “Mesmo assim, era assíduo frequentador da biblioteca de lá.” No prefácio do livro, o jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça, afirma que Gama foi “o negro mais importante do século 19”.

Por complicações da diabete, o abolicionista Gama, entretanto, morreria seis anos antes de a Lei Áurea ser promulgada. Dez por cento da população paulistana, de acordo com estimativas da época, compareceu ao seu enterro – São Paulo contava então com 40 mil habitantes.

A multidão começou a chegar ao Cemitério da Consolação, onde ocorreu o sepultamento, ao meio-dia – o enterro estava marcado para as 16h. Não houve transporte oficial para o cortejo fúnebre. Do bairro do Brás, onde ele morava, o caixão veio passando de mão em mão até chegar à sepultura, num gesto coletivo. As informações são do jornal “O Estado de S. Paulo”.

Luiz Gama por si mesmo

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Luís Gama pouco produziu sobre si, tanto por ter publicado somente uma obra – “Primeiras Obras Burlescas de Getulino” – quanto por não gostar de falar sobre si mesmo, como podemos ver no inicio de sua carta à Lúcio de Mendonça:

Carta de Luís Gama a Lúcio de Mendonça

São Paulo, 25 de julho de 1880

Meu caro Lúcio

Recebi o teu cartão com a data de 28 do pretérito. Não me posso negar ao teu pedido, porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultar, de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os trouxe de memória.

Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado na rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguesia de Sant’Ana, a 21 de junho de 1830, por às 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de ltaparica. Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de nação), de nome Luísa Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.

Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma “casa de dar fortuna” em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses “amotinados” fossem mandados por fora pelo governo, que nesse tempo tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude alcançar a respeito dela. Nesse ano, 1861, voltando a São Paulo, e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que nesta carta envio-te.

Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome. Ele foi rico, e nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luís Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao longo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho “Saraiva”.

Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária, canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspeto e enérgico, que recebia escravos da Bahia, à comissão, tinha um filho aperaltado, queestudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas, muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principalmente a mais velha. A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e piedade. Tinha eu 10 anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em sua casa. Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova, deram-me de cear e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia, que era mucama da casa.

Sempre que me lembro desta boa senhora e de suas filhas, vêm-me as lágrimas aos olhos, porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que me afagaram por alguns dias. Dali saí derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me verem partir. Oh! Eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires.

Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antônio Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8 ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos a fome, em cárcere privado, e já com a idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio.

Este alferes Antônio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província. Como já disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até Campinas. Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e, por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu “baiano”. Valeu-me a pecha! 0 ultimo recusante foi a venerando e simpático ancião Francisco Egídio de Souza Aranha, pai do exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo. Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse:

” – Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; diz-me: onde nasceste?

– Na Bahia, respondi eu.

– Baiano? – exclamou admirado o excelente velho. – Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno”.

Repelido como “refugo”, com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para casa do Sr. Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio n. 2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia. Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar. Em 1847, contava eu 17 anos, quando para a casa do Sr. Cardoso veio morar, como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de Campinas, onde morava, o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hoje doutor em direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi-Guaçu, onde é fazendeiro. Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras.

Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosamente e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, que aliás votava-me a maior estima, e fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos; cheguei a cabo de esquadra graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a conselho, por ato de suposta insubordinação, quando tinha-me limitado a ameaçar um oficial insolente, que me havia insultado e que soube conter-se. Estive, então, preso 39 dias, de 1o. de junho a 9 de agosto. Passava os dias lendo e, às noites, sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a imagem de minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu dormitava; e, em sonho vi que a levaram presa. Pareceu-me ouvi-Ia distintamente que chamava por mim. Dei um grito, espavorido saltei da tarimba;os companheiros alvorotaram-se; corri à grade, enfiei a cabeça pelo xadrez. Era solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal alumiado pela luz amarelenta de enfumarada lanterna. Voltei para minha tarimba, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles narraram-me também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi.

Durante o meu tempo de praça, nas horas vagas, fiz-me copista; escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antônio Coelho Neto, que tornou-se meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento, desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do Governo; e, como amanuense, no gabinete do exmo. Sr. Conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos anos, com aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na administração, polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de Direito, fui eu seu ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu comportamento, conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de letras e de civismo, que conservo com orgulho.

Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em que “por turbulento e sedicioso” fui demitido a “bem do serviço público”, pelos conservadores, que então haviam subido ac poder. A portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antônio Manuel dos Reis, meu particular amigo, então secretário de polícia, e assinada pelo exmo. dr. Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi nomeado desembargador da relação da Corte. A turbulência consistia em fazer parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas idéias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis.

Desde que fiz-me soldado, comecei a ser homem; porque até os 10 anos fui criança; dos 10 aos 18, fui soldado. Fiz versos; escrevi para muitos jornais; colaborei em outros literários e políticos. E redigi alguns. Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no “Ipiranga” à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante; eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime.

Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para ti, que me estimas deveras.

Teu Luís.

Luís Gama


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Outra obra sempre citada quando se trata de Luís Gama é seu poema “Quem sou eu?”, também conhecido como “Bodarrada” (que advém de “bode”, forma pejorativa como eram tratados os negros que se opunham ao regime escravocrata pelos conservadores), que fala tanto sobre Luís quanto sobre sua época.

QUEM SOU EU?

Quem sou eu? Que importa quem?

Sou um trovador proscrito,

Que trago na fronte escrito

esta palavra “Ninguém!”

A.E. Zaluar – “Dores e Flores”

Amo o pobre, deixo o rico,

Vivo como o Tico-tico;

Não me envolvo em torvelinho,

Vivo só no meu cantinho;

Da grandeza sempre longe

Como vive o pobre monge.

Tenho mui poucos amigos,

Porém bons, que são antigos,

Fujo sempre à hipocrisia,

À sandice, à fidalguia;

Das manadas de Barões?

Anjo Bento, antes trovões.

Faço versos, não sou vate,

Digo muito disparate,

Mas só rendo obediência

À virtude, à inteligência:

Eis aqui o Getulino

Que no pletro anda mofino.

Sei que é louco e que é pateta

Quem se mete a ser poeta;

Que no século das luzes,

Os birbantes mais lapuzes,

Compram negros e comendas,

Têm brasões, não – das Kalendas;

E com tretas e com furtos

Vão subindo a passos curtos;

Fazem grossa pepineira,

Só pela arte do Vieira,

E com jeito e proteções.

Galgam altas posições!

Mas eu sempre vigiando

Nessa súcia vou malhando

De tratante, bem ou mal,

Com semblante festival

Dou de rijo no pedante

De pílulas fabricante

Que blasona arte divina

Com sulfatos de quinina

Trabusanas, xaropadas,

E mil outras patacoadas.

Que, sem pingo de rubor

Diz a todos que é DOUTOR!

Não tolero o magistrado,

Que do brio descuidado,

Vende a lei, trai a justiça

– Faz a todos injustiça –

Com rigor deprime o pobre

Presta abrigo ao rico, ao nobre,

E só acha horrendo crime

No mendigo, que deprime.

– neste dou com dupla força,

Té que a manha perca ou torça.

Fujo às léguas do lojista,

Do beato e do sacrista –

Crocodilos disfarçados,

Que se fazem muito honrados

Mas que, tendo ocasião,

São mais feros que o Leão

Fujo ao cego lisonjeiro,

Que, qual ramo de salgueiro,

Maleável, sem firmeza

Vive à lei da natureza

Que, conforme sopra o vento,

Dá mil voltas, num momento

O que sou, e como penso,

Aqui vai com todo o senso,

Posto que já veja irados

Muitos lorpas enfurnados

Vomitando maldições,

Contra as minhas reflexões.

Eu bem sei que sou qual Grilo,

De maçante e mau estilo;

E que os homens poderosos

Desta arenga receosos

Hão de chamar-me Tarelo

Bode, negro, Mongibelo;

Porém eu que não me abalo

Vou tangendo o meu badalo

Com repique impertinente,

Pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou sou bode

Pouco importa. O que isto pode?

Bodes há de toda casta

Pois que a espécie é muito vasta…

Há cinzentos, há rajados,

Baios, pampas e malhados,

Bodes negros, bodes brancos,

E, sejamos todos francos,

Uns plebeus e outros nobres.

Bodes ricos, bodes pobres,

Bodes sábios importantes,

E também alguns tratantes…

Aqui, nesta boa terra,

Marram todos, tudo berra;

Nobres, Condes e Duquesas,

Ricas Damas e Marquesas

Deputados, senadores,

Gentis-homens, vereadores;

Belas damas emproadas

De nobreza empantufadas;

Repimpados principotes,

Orgulhosos fidalgotes,

Frades, Bispos, Cardeais,

Fanfarrões imperiais,

Gentes pobres, nobres gentes

Em todos há meus parentes.

Entre a brava militança

Fulge e brilha alta bodança;

Guardas, Cabos, Furriéis

Brigadeiros, Coronéis

Destemidos Marechais,

Rutilantes Generais,

Capitães de mar-e-guerra

– Tudo marra, tudo berra –

Na suprema eternidade,

Onde habita a Divindade,

Bodes há santificados,

Que por nós são adorados.

Entre o coro dos Anjinhos

Também há muitos bodinhos.

O amante de Syringa

Tinha pêlo e má catinga;

O deus Mendes, pelas costas,

Na cabeça tinha pontas;

Jove, quando foi menino,

Chupitou leite caprino;

E segundo o antigo mito

Também Fauno foi cabrito.

Nos domínios de Plutão,

Guarda um bode o Alcorão;

Nos lundus e nas modinhas

São cantadas as bodinhas:

Pois se todos têm rabicho,

Para que tanto capricho?

Haja paz, haja alegria,

Folgue e brinque a bodaria;

Cesse pois a matinada,

Porque tudo é bodarrada!

Referências:

http://www.quilombhoje.com.br/luisgama/luisgama.htm

http://www.horadopovo.com.br/2012/01Jan/3022-11-01-2012/P8/pag8a.htm

Clique para acessar o carta%20de%20Luis%20Gama.pdf

Luiz Gama – Um autodidata muito à frente de seu tempo

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Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em 21 de junho de 1830, na cidade de Salvador, Bahia. Filho de mãe africana livre, Luiza Mahin e de pai de origem portuguesa, fidalgo da corte baiana, foi um dos principais abolicionistas da história do Brasil. Foi poeta, advogado, jornalista e patrono da cadeira nº 15 da Academia Paulista de Letras.

A fascinante história desse intelectual é recheada de reviravoltas. Aos 10 anos de idade, Luís ficou sob a guarda de seu pai, uma vez que sua mãe – de participação ativa nos movimentos negros da Bahia, em especial, na Revolta dos Malês (1835) – sofria perseguição política e estava em exílio. O parentesco não o impediu de ser vendido como escravo pelo próprio pai,
supostamente para quitar dívidas de jogo. Transportado para o Rio de Janeiro, foi comprado pelo alferes e comerciante de escravos Antônio Pereira Cardoso para ser revendido. Passou por diversas cidades de São Paulo até ser levado à cidade de Lorena.

O fato de ser baiano, tornava Gama um escravo pouco desejável. A efervescência das revoltas de escravos baianos à época impunha aos escravos provenientes da Bahia uma fama de revoltosos e insubordinados. Foi dessa forma que, ao não conseguir vender a criança a nenhum fazendeiro paulista, Antônio Cardoso decidiu levá-lo à sua própria fazenda. Lá, o jovem Luiz foi posto a trabalhar como copeiro e sapateiro e a lavar e consertar roupas. Em 1847, aos 17 anos de idade, alfabetizou-se com a ajuda do estudante Antônio Rodrigues de Araújo, que estava se hospedando na fazenda de seu senhor. Iniciava-se, assim, sua saga com a palavra escrita, universo praticamente exclusivo dos homens brancos e livres à época, que o consagraria 12 anos mais tarde.

Em 1848, fugiu para São Paulo, sabendo da ilegalidade de sua condição de escravo. Casou-se em 1850, já como militar, e passou a frequentar o Curso de Direito do Largo do São Francisco. Por se negro, enfrentou a hostilidade de colegas e professores. Ainda assim, persistiu como ouvinte durante tempo o suficiente para adquirir o conhecimento que lhe permitiu atuar na defesa jurídica de negros escravos ao longo dos anos seguintes. Deu baixa no serviço militar em 1854, após seis anos de tumultuada carreira no exército.

Na década de 1860, destacou-se como jornalista e colaborador de diversos periódicos progressistas. Projetou-se na literatura através de seus poemas, onde satirizava a aristocracia e os poderosos de seu tempo. Como poeta satírico, ocultou-se sob os pseudônimos de Afro, Getulino e Barrabás. Sua principal obra, o único livro publicado pelo intelectual, foi “Primeiras trovas burlescas de Getulino”, de 1859, onde se encontra a sátira “Quem sou eu?”, também conhecida como Bodarrada (ver vídeo). Luiz Gama inaugurou a imprensa humorística paulistana ao fundar, em 1864, o jornal “Diabo Coxo”. Naturalmente, sofreu forte oposição dos intelectuais conservadores de sua época. Ainda assim, hoje é reconhecido como um dos grandes representantes da segunda geração do romantismo brasileiro.

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Luiz Gama foi um dos maiores líderes abolicionistas do Brasil. Propagou ideias antiescravagistas e lutou pela libertação de negros de forma ativa em pleno século XIX – quase 100 anos antes de Martin Luther King, por exemplo. Usou e abusou de sua impecável oratória nos tribunais, onde conseguiu libertar mais de 500 escravos. Ganhou notoriedade ao proferir que ao matar o seu senhor, o escravo agia sempre em legítima defesa. Em 1869, fundou o Jornal Radical Paulistano ao lado de Rui Barbosa. Em 1880, foi líder da Mocidade Abolicionista e Republicana. Sua luta pela libertação dos escravos o levava a ser hostilizado seguidamente pelo Partido Conservador o que culminou com sua demissão do cargo de amanuense por motivos políticos.

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Faleceu em 24 de agosto de 1882 e foi sepultado no Cemitério da Consolação, em uma cerimônia que contou com a presença de 3.000 pessoas, em uma São Paulo de 40.000 habitantes. O poeta Raul Pompéia (1863-1895) imortalizou Luiz gama e sua obra, escrevendo na ocasião:

(…) não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor; outros… inúmeros. E Luís Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e atraente; e a todos satisfazia, praticando as mais angélicas ações, por entre uma saraivada de grossas pilhérias de velho sargento. Toda essa clientela miserável saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, outro a liberdade, alguns um conselho fortificante. E Luís Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia ilumi nando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro…E, por essa filosofia, empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bom…Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo o que lhe vinha das mãos de algum cliente mais abastado”

Márcio Luis recitando Bodarradda de Luiz Gama:

https://www.youtube.com/watch?v=YiKlr1CVBqk

Referências e fontes:

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-sonho-sublime-de-um-ex-escravo

http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=820:luiz-gama&catid=47:letra-l&Itemid=1

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142007000200021&lng=pt&nrm=iso

http://www.palmares.gov.br/?p=33700

http://institutoluizgama.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=section&layout=blog&id=6&Itemid=41

http://educacao.uol.com.br/biografias/luis-gama.htm